Ainda na vibe da crise comercial entre China e EUA, bem como seus aliados de parte a parte, eu gostaria de fazer uma reflexão sobre os Treasuries, que nada mais são do que os títulos da dívida pública americana e qual seu impacto neste bolo doido a que o planeta vem sendo exposto nos últimos dias, como este mercado pode afetar a Economia Mundial?
As vendas de Treasuries (títulos do Tesouro dos EUA) pela China podem afetar, de forma indireta e estratégica, a relação comercial com os Estados Unidos. Trata-se de um movimento que envolve tanto considerações financeiras quanto geopolíticas. Abaixo, organizo os principais pontos desse fenômeno.
A China tem reduzido gradualmente suas reservas de títulos do Tesouro americano nos últimos anos. Embora continue sendo uma das maiores detentoras estrangeiras desses ativos, essa diminuição pode sinalizar uma reavaliação da dependência econômica mútua entre as duas maiores economias do mundo. As razões por trás dessas vendas são múltiplas: Em primeiro lugar, a diversificação das reservas internacionais é uma estratégia crescente adotada pela China no contexto de transformações na ordem econômica global. Tradicionalmente, o país manteve uma parcela significativa de suas reservas em ativos denominados em dólar, especialmente em títulos do Tesouro dos Estados Unidos, como forma de garantir liquidez, segurança e estabilidade cambial. No entanto, nas últimas décadas, e particularmente após a crise financeira de 2008 e o acirramento das tensões geopolíticas com os EUA, Pequim passou a rever essa dependência. Um dos movimentos mais notáveis tem sido o aumento sistemático das reservas em ouro, que, ao contrário dos Treasuries, não está vinculado a nenhuma moeda fiduciária e é percebido como um ativo de proteção em períodos de instabilidade. O Banco Popular da China, tem feito com que seu país seja atualmente o maior comprador mundial de ouro. Além disso, a China tem investido em títulos emitidos por outros países, como Alemanha, França e Japão, além de ampliar sua exposição a moedas como o euro, o iene e até mesmo o rublo, no contexto de acordos bilaterais com países estratégicos. Essa política reflete o esforço chinês de mitigar riscos associados à dominância do dólar, reduzir vulnerabilidades externas e avançar no processo de internacionalização do yuan. Ao mesmo tempo, sinaliza uma reconfiguração do papel da China na governança financeira global, desafiando o modelo centrado nos EUA.
Em um cenário marcado pela intensificação das rivalidades geopolíticas entre China e Estados Unidos, a redução da exposição ao dólar norte-americano surge como uma medida estratégica de contenção de riscos. As disputas entre as duas potências vão além do comércio internacional e envolvem também áreas sensíveis como tecnologia, segurança cibernética, propriedade intelectual e influência militar na Ásia-Pacífico. Diante dessa conjuntura, a China passou a enxergar a alta dependência de ativos denominados em dólar como uma vulnerabilidade econômica e geopolítica. Isso porque, em situações de conflito ou sanções, os EUA podem restringir o acesso a seu sistema financeiro, como ocorreu com outros países. Nesse contexto, reduzir o volume de títulos do Tesouro americano nas reservas internacionais é parte de uma política de autodefesa monetária. Tal movimento visa proteger a estabilidade financeira doméstica e fortalecer a soberania econômica da China. Além disso, reflete uma resposta à crescente incerteza sobre a confiabilidade das instituições ocidentais em cenários de disputa prolongada. A estabilização do yuan é uma das razões estratégicas para a venda de títulos do Tesouro dos Estados Unidos pela China, especialmente em contextos de pressão cambial. Quando ocorrem episódios de fuga de capitais ou expectativas de desvalorização da moeda chinesa, o governo pode utilizar parte de suas reservas internacionais — incluindo os Treasuries — para intervir no mercado de câmbio. Ao vender esses ativos e converter os recursos em yuans, o Banco Popular da China consegue conter a depreciação da moeda, preservando sua estabilidade frente ao dólar e a outras moedas relevantes. Essa política é fundamental para evitar volatilidades excessivas que possam comprometer o comércio exterior, a confiança dos investidores e a estabilidade macroeconômica. Além disso, o controle sobre a taxa de câmbio é central para os objetivos da política industrial chinesa, que depende de um nível competitivo da moeda para manter sua inserção global. A venda de Treasuries, nesse contexto, funciona como instrumento de política monetária e cambial em cenários de turbulência financeira.
Isso pode trazer implicações tais como, a venda em larga escala de títulos do Tesouro americano por parte da China pode ter efeitos significativos sobre a estrutura de juros dos Estados Unidos, com implicações macroeconômicas de grande alcance. Quando esses ativos são despejados no mercado, ocorre uma elevação da oferta, o que tende a reduzir seus preços e, consequentemente, elevar os rendimentos (yields) exigidos pelos investidores para adquiri-los. Esse aumento nos juros tem impacto direto sobre o custo de financiamento do governo norte-americano, que precisa pagar mais para rolar sua dívida pública — uma das maiores do mundo. Além disso, juros mais altos se transmite para toda a economia, encarecendo o crédito para famílias, empresas e governos subnacionais, o que pode desacelerar o consumo, o investimento e o crescimento econômico. Em contextos de endividamento elevado e política fiscal expansionista, como nos EUA pós-pandemia, esse efeito torna-se ainda mais sensível. O Federal Reserve pode ser forçado a ajustar sua política monetária, gerando tensões entre os objetivos de controle inflacionário e estímulo à atividade econômica. Em suma, a elevação dos juros provocada por vendas externas de Treasuries, especialmente por grandes detentores como a China, constitui um risco sistêmico relevante e um canal não convencional de pressão geoeconômica.
A venda expressiva de títulos do Tesouro norte-americano por parte da China pode ainda desencadear um aumento significativo da volatilidade nos mercados financeiros globais. Investidores frequentemente interpretam esse tipo de movimentação como um sinal de desconfiança em relação à estabilidade macroeconômica dos Estados Unidos ou como um indicativo de agravamento das tensões geopolíticas entre as duas maiores economias do mundo. Em ambos os casos, a reação imediata tende a ser marcada por maior aversão ao risco, realocação de ativos e busca por portos seguros, como ouro ou franco suíço. Esse comportamento gera oscilações abruptas nos preços de ativos financeiros, nos índices acionários e nas taxas de câmbio. A percepção de que a China está deliberadamente reduzindo sua exposição ao dólar pode também afetar as expectativas quanto à trajetória futura dos juros americanos, impactando decisões de política monetária do Federal Reserve. Além disso, esse cenário de incerteza pode influenciar negativamente os fluxos de capitais para mercados emergentes, elevando seus prêmios de risco. Em contextos de elevada integração financeira, esses efeitos se disseminam rapidamente, ampliando a instabilidade sistêmica. Assim, a volatilidade gerada por movimentos desse tipo não se restringe aos EUA, mas afeta a economia global como um todo.
Sim, mas você leitor que teve paciência em ler todo este texto com um grau de tecnicidade em economês, deve estar perguntando, e o que a guerra comercial tem a ver com isto? embora não sejam diretamente vinculadas ao comércio de bens e serviços, as vendas de Treasuries podem ser lidas como uma forma de retaliação econômica ou como instrumento de barganha política. Isso pode afetar: A confiança mútua: reduzindo o grau de interdependência financeira entre os países. Negociações comerciais: a medida pode ser usada como pressão indireta em momentos de disputa tarifária ou restrições tecnológicas. Fluxos comerciais futuros: caso a relação bilateral se deteriore, pode haver impactos no volume e composição do comércio entre China e EUA.
A venda de Treasuries pela China é mais um elemento da complexa relação sino-americana, que mistura interdependência econômica com competição estratégica. Ainda que as vendas não afetem diretamente o comércio bilateral no curto prazo, elas revelam uma tendência de desglobalização seletiva e de construção de alternativas ao sistema financeiro centrado no dólar.
Rosevaldo Ferreira é economista, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), foi Diretor de Tributos da Prefeitura de Feira de Santana, Coordenador de Projetos do Sudic, Auditor Fiscal, Coordenador Regional da Agerba e Coordenador do Curso de Economia da UEFS.
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