A cena é comum nas ruas de muitas cidades brasileiras: pessoas uniformizadas, com colete refletivo e apito em punho, controlando o trânsito e orientando pedestres, muitas vezes assumindo o papel de autoridade no espaço urbano. Em Feira de Santana, a presença dos chamados monitores de trânsito gerou uma intensa discussão jurídica, política e institucional sobre os limites dessa atuação.
O que parece um serviço de apoio à mobilidade urbana pode, na verdade, esconder uma prática incompatível com o ordenamento jurídico. Afinal, quem são essas pessoas? Qual sua formação? E, sobretudo: elas podem, legalmente, exercer funções típicas de agentes de trânsito?
Neste texto, vamos explorar o conceito e as fases do poder de polícia, a possibilidade (ou não) de sua delegação, os requisitos legais para a atuação de um agente na via pública, e o que diz o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) sobre os gestos e sinais utilizados para o controle do tráfego. Ao final, analisamos se a atuação dos monitores de trânsito em Feira de Santana encontra respaldo na legalidade — ou se configura, de fato, uma ilegalidade disfarçada de serviço público.
O que é Poder de Polícia
O poder de polícia é uma das expressões mais relevantes da autoridade estatal no cotidiano da sociedade. Trata-se da prerrogativa conferida à Administração Pública para restringir ou condicionar o exercício de direitos individuais em nome do interesse coletivo, assegurando a preservação da ordem, da segurança e do bem-estar social.
No dia a dia, o poder de polícia é o que permite ao Estado dizer “sim” ou “não” ao exercício de certos direitos, sempre que houver necessidade de proteger o interesse público. Isso significa que a liberdade de uma pessoa — como o direito de circular com seu carro ou abrir um negócio — pode ser limitada quando essa atividade representar risco à segurança, à ordem ou ao bem-estar da coletividade.
É por meio do poder de polícia que o agente de trânsito, ao se posicionar em uma faixa de pedestre, pode determinar a hora em que o veículo deve parar e o momento em que o pedestre pode atravessar — e o contrário também. Trata-se de uma restrição legítima da liberdade de locomoção, exercida por autoridade pública, com fundamento na lei e em nome da segurança de todos.
As Fases do Poder de Polícia
O poder de polícia exercido pelo Estado se desenvolve por meio de quatro fases distintas, que se complementam na busca pelo interesse público. Cada etapa tem uma função específica e ajuda a entender como o Estado organiza e controla a vida em sociedade, inclusive no trânsito.
- Ordem de Polícia
É a fase em que o Estado cria normas para regular condutas dos cidadãos. Essas normas estabelecem os limites e condições para o exercício de certos direitos e liberdades. No trânsito, essa fase está representada pela criação do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), pelas resoluções do CONTRAN e pelos regulamentos municipais de trânsito.
- Consentimento de Polícia
Nesta fase, o Estado autoriza, de forma individualizada, o exercício de uma atividade, desde que cumpridos certos requisitos legais. A obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), que depende de exames e requisitos objetivos, é um exemplo desta fase.
- Fiscalização de Polícia
É a fase em que o Estado verifica se as normas estão sendo cumpridas. Conforme o Anexo I do CTB, fiscalização de trânsito é o ato de controlar o cumprimento das normas estabelecidas na legislação de trânsito. No caso da faixa de pedestre, quando um agente de trânsito orienta veículos e pedestres com gestos ou apito, ele está exercendo fiscalização de trânsito, pois assegura o respeito à prioridade de passagem e à segurança da travessia.
- Sanção de Polícia
Nesta etapa, o Estado aplica as penalidades àqueles que descumprem as normas. No trânsito, isso se manifesta na imposição de multas, retenção de veículos, suspensão de habilitação, entre outras sanções administrativas.
A impossibilidade de delegação do poder de polícia a particulares
Embora certos serviços públicos possam ser prestados por entes privados mediante concessão ou permissão, o poder de polícia não se confunde com serviço público delegável. Trata-se de uma função que expressa a autoridade estatal e, por isso, deve ser exercida diretamente pelo Estado, por meio de agentes legalmente investidos.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 532 da Repercussão Geral, firmou o entendimento de que não é possível delegar o exercício do poder de polícia a particulares estranhos à Administração Pública.
A Corte admitiu, em caráter excepcional, que pessoas jurídicas de direito privado que integram a Administração Pública indireta — como empresas públicas ou sociedades de economia mista com capital público majoritário e atuação em regime não concorrencial — possam exercer esse poder, desde que dentro de suas atribuições legais. Isso, contudo, não autoriza a atuação de empresas privadas contratadas para exercer, de forma direta, funções típicas de autoridade pública.
No caso de Feira de Santana, os chamados monitores de trânsito, contratados por empresas terceirizadas, não integram a Administração Pública e não possuem investidura legal para exercer funções de fiscalização viária. Ao controlar a passagem de veículos e pedestres, com gestos e apito, exercem atividade típica de poder de polícia, o que configura uma atuação ilegal, contrária à Constituição e ao Código de Trânsito Brasileiro.
A atuação do agente de trânsito na faixa de pedestre
A presença do agente de trânsito na faixa de pedestre representa a manifestação direta do poder de polícia. Nessa situação, ele regula o direito de passagem, determinando quando os veículos devem parar e quando os pedestres podem atravessar, conforme as condições da via e a segurança dos usuários.
Segundo o Anexo I do CTB, agente da autoridade de trânsito é o servidor civil, estatutário ou celetista, no exercício regular de suas atribuições, vinculado ao órgão ou entidade executivo de trânsito ou rodoviário, e competente para aplicar as normas de trânsito.
Essa atuação segue padrões técnicos e legais. O CTB estabelece expressamente que os gestos e sons por apito são de uso exclusivo dos agentes da autoridade de trânsito. São eles os únicos autorizados a utilizar movimentos convencionais de braço e sinais sonoros para orientar ou ordenar o fluxo de veículos e pedestres nas vias públicas.
Tais comandos, conforme o art. 89, §2º do CTB, têm prioridade sobre qualquer outro tipo de sinalização existente no local. Isso reforça que apenas quem possui competência legal pode ordenar o tráfego com efeitos jurídicos válidos. Qualquer outra atuação semelhante, por quem não detenha essa condição legal, além de ineficaz, é ilícita. A depender da situação, pode inclusive configurar usurpação de função pública, nos termos do art. 328 do Código Penal.
Conclusão
A atuação no trânsito, especialmente em situações de controle direto do fluxo de veículos e pedestres, é uma atividade típica de poder de polícia, cuja titularidade pertence exclusivamente ao Estado. Trata-se de uma função que exige previsão legal, preparo técnico e investidura formal, pois envolve a restrição de direitos fundamentais, como a liberdade de locomoção, sempre em nome do interesse coletivo.
Conforme demonstrado ao longo deste texto, a fiscalização de trânsito, como ocorre nas faixas de pedestre, não pode ser desempenhada por pessoas estranhas à estrutura da Administração Pública, tampouco por funcionários de empresas terceirizadas, como ocorre com os chamados monitores de trânsito em Feira de Santana. Ainda que bem intencionada, essa prática contraria frontalmente o que prevê o Código de Trânsito Brasileiro e o entendimento do Supremo Tribunal Federal, configurando exercício indevido de função pública.
Gestos e apitos não são apenas sinais de cortesia ou boa vontade: são instrumentos jurídicos de autoridade, cujo uso é exclusivo dos agentes da autoridade de trânsito, nos termos do CTB. Permitir que terceiros assumam esse papel é renunciar ao princípio da legalidade, enfraquecer o Estado e colocar em risco a segurança viária.
O debate em Feira de Santana expõe um problema que vai além da gestão do tráfego: revela a urgência de respeitar os limites institucionais do poder público e de assegurar que funções públicas sejam exercidas apenas por quem tenha, de fato, e de direito, autoridade para tanto.
Por Denilson Carneiro – Advogado, Mestrando em Direito Internacional, Especialista em Trânsito, Presidente da Comissão de Direito de Trânsito da OBA/BA subseção Feira de Santana e Professor Universitário
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